junio 16, 2020

«O fio comum que organizou simbolicamente e deu sentido político às manifestações de “caceroleros” e de “paneleiros” foi um sentimento de ódio que exacerbou o “eu” e, ao mesmo tempo, deslegitimou a existência do “outro”»


Ramiro Carlos Humberto Caggiano Blanco e Yedda Alves de Oliveira Caggiano Blanco
«A construção discursiva do ódio nos “cacerolazos” (Argentina) e “panelaços” (Brasil): padrões comuns e diferenças»

Cadernos de Linguagem e Sociedade, vol. 20, n.º 1 (fevereiro 2019); publicado: 11 de fevereiro de 2020
N.º especial: «Dossiê: Estudos sobre polidez», eds. Isabel Roboredo Seara, Rodrigo Albuquerque e Ana Lúcia Tinoco Cabral

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Se incluye a continuación un extracto seleccionado de las páginas 29, 30 a 38 y 45 a 46 de la publicación en PDF. Las referencias pueden consultarse en la ubicación original.

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Fonte: Divulgação.


«Caracterizamos manifestação social do ódio como uma prática social de construção “do outro”, que se faz exacerbando a atribuição de diferenças intersubjetivas, de vários tipos, por mecanismos tais como aumentar as características negativas desse “outro”, salientar desmedidamente as positivas do “eu”, ou realizar uma combinação de ambas, que resulta em uma posição subalterna desse “outro” assim construído em relação ao indivíduo ou ao grupo que enuncia».


«Resumo

»O trabalho objetiva mostrar como as expressões de ódio contidas nos enunciados proferidos nas manifestações contra o governo de Cristina Kirchner e de Dilma Rousseff, conhecidos como “Cacerolazos” (2012-2014) e “Panelaços” (2015-2016) representam e extremam o processo da construção desse sentimento. O corpus do trabalho é constituído por cartazes e depoimentos espontâneos dos participantes de ambas as manifestações, que serão analisados mediante comparações dos enunciados e apontamento das regularidades temáticas, discursivas e semióticas empregadas para expressar descortesia nos respectivos eventos políticos. O uso do sentimento do ódio como recurso discursivo ultimamente parece ter sido utilizado em vários países como ferramenta política e, por tal razão, o estudo desse fenômeno se justifica na tentativa de poder compreendermos as semelhanças e as diferenças de seu funcionamento.

»Na fundamentação teórica, usaremos os conceitos de descortesia por fustigação e de autonomia exacerbada dados por Marlangeon (2005), e a polarização ideológica “nós” x “eles” descrita por Van Dijk (2005). Veremos ainda como discursos símiles, por vezes especulares, foram realizados como expressão reativa a situações sociais nos dois países, mesmo que eles tenham formações sócio-históricas distintas, para finalmente, nas considerações finais, enfatizarmos o modo como a polarização foi construída.



»Introdução

»Nicolau Maquiavel, no livro “O Príncipe”, considerado o texto precursor da ciência política, se perguntava se era mais conveniente ao governante ser amado ou temido. Dessa forma, estabelecia os sentimentos de amor e de temor como fonte de validação do poder do soberano, prescindindo da fundamentação teológica. Tais sentimentos foram, durante centúrias, os pilares dos estudos políticos até que, no século XX, se descobriu um bem mais funcional ao poder: o ódio.

»Embora tenha havido, no passado século, muitas experiências políticas que aperfeiçoaram os mecanismos de controle social mediante a exacerbação do ódio contra determinados “outros”, tanto em regimes políticos totalitários quanto em democráticos, foi no século XXI que se alcançou o grau máximo de efetividade devido à presença ubíqua dos meios de comunicação e a entrada em cena de novos protagonistas: a internet e as redes sociais. O ódio encontrado nas interações se assume, muitas vezes, como uma interface pela qual a realidade exterior é interpretada, mediante a busca da desconstrução ou da negação da narrativa do outro (antes do que afirmar a própria).

»Diante disso, o presente trabalho tem como finalidade mostrar como as expressões de ódio contidas nos enunciados proferidos nas manifestações contra o governo de Cristina Kirchner e de Dilma Rousseff, conhecidos como “Cacerolazos” (2012-2014) e “Panelaços” (2015-2016), respectivamente, representam e extremam o processo de construção de tal sentimento. O corpus do trabalho é constituído por enunciados expressos em cartazes e por depoimentos espontâneos dos participantes de ambas as manifestações.

»A partir das comparações dos enunciados, apontaremos as regularidades temáticas, discursivas e de elementos semióticos nos respectivos eventos políticos, tais como ataques à honra das ex-mandatárias - e membros dos partidos governantes-, à sua moral e sexualidade, o desejo tanático etc. seja mediante descortesia por fustigação, por refrateriadade, ou por exarcebação do “nós” (MARLANGEON, 2005) na polarização ideológica “nós” x “eles” (VAN DIJK, 2012). Por fim, veremos como discursos símiles, por vezes especulares, foram realizados como expressão reativa a situações sociais nos dois países, mesmo que eles tenham formações sócio-históricas distintas.



»A argumentação nos discursos de ódio

»Primeiramente, entendemos o discurso como “a materialização das formações ideológicas” (FIORIN, 2007, p.41), que colaboram para uma reprodução de índices discursivos no texto, na fala e na ação social em geral.

»O discurso, segundo Van Dijk (2012), é visto como uma das partes da tríade cognição-discurso-sociedade que opera as relações entre a língua e o poder. Ou seja, os participantes de um discurso, tanto falado como escrito, desempenham determinado papel social, marcado por uma formação ideológica, ideologias que, no dizer de Van Dijk (2005, p. 12),

»“têm uma função social [...] organizam e baseiam as representações sociais compartilhadas pelos membros de grupos (ideológicos). [...] são, em última instância, a base dos discursos e de outras práticas sociais dos membros dos grupos sociais como membros do grupo. [...] permitem que os membros organizem e coordenem suas ações (conjuntas) e suas interações com vistas aos objetivos e interesses do grupo como um todo”.

»Feitas tais observações, perguntamo-nos como os discursos de ódio se caracterizam argumentativamente?

»A argumentação, dentro da linha clássica, está voltada ao campo da lógica, da racionalidade apontada por uma premissa inicial e seu desenvolvimento com fatos, exemplificações, com o objetivo de resolver, esclarecer, convencer sobre um problema dado para uma determinada audiência (CEIA, 2009). Segundo o autor, “argumentar é procurar coerência onde existe dúvida, é descortinar sentido num paradoxo, mas também pode ser dar sentido a uma absurdidade ou a uma contradição”.

»Entretanto, e aqui, entra o foco do nosso estudo, a argumentação nos atuais tempos expande os limites do discurso argumentativo clássico e adquire aspectos próprios. A primeira característica que apresentamos é a supremacia da emoção em detrimento da razão, pois

»“a argumentação crítica visa hoje inverter os termos da retórica clássica dos oradores gregos e romanos: o encantamento da opinião pública deve ser substituído pelo encantamento do leitor perante o texto; o poder do discurso oral, pelo poder significante do logos inscrito no texto autoral, ao qual sucede o poder significante do texto crítico; à verdade aparente detida pelo rhetor” (CEIA, 2009).

»Ao resignar a ordem racional da tônica argumentativa, temos um arguente, movido pela paixão ou não, que mira principalmente – por vezes, exclusivamente – o lado emocional da audiência, com o objetivo de provocar ou reforçar sentimentos para conseguir seu propósito. Assim, a argumentação pode-se diluir num mar de emoções que provocam um discurso difuso, cujo divórcio da realidade fatual se disfarça, amiúde, com matizes de ódio e preconceitos.

»Como costumeiramente acontece nas ciências sociais com diversos termos, é muito difícil chegarmos a uma definição que seja aceita universalmente acerca do significado de “discurso do ódio” (WEBER, 2009).

»Na necessidade de termos um conceito suficiente para dar conta deste trabalho, não trataremos do ódio individual, abordado pela psicologia, senão de sua manifestação social. Caracterizamos tal sentimento, seguindo Reguillo (2013), como uma prática social de construção “do outro”, que se faz exacerbando a atribuição de diferenças intersubjetivas, de vários tipos, por mecanismos tais como aumentar as características negativas desse “outro”, salientar desmedidamente as positivas do “eu”, ou realizar uma combinação de ambas, que resulta em uma posição subalterna desse “outro” assim construído em relação ao indivíduo ou ao grupo que enuncia. Tal construção não só naturaliza a diferença como, no caso do ódio, faz desse “outro” um inimigo que ameaça, real ou potencialmente, a existência do “eu normalizador” do grupo. Como aponta Reguillo (2013), localizam “o diferente” nas antípodas da sociedade normalizada, disciplinada e medicalizada, que se esforça para resistir às contaminações de um mundo “outro” que ameaça questionar seu sistema de doxas constitutivo.

»Dessa forma, a construção da “outredade” passa a ser um elemento constitutivo do “eu” do enunciador ou do grupo ao qual ele pertence ou ao qual ele, em maior ou menor medida, adere. Tal diferença, assim criada, é situada e relacional, ou seja, responde ao que e agora deve servir para infamar “o outro”: xenofobia, misoginia, LGTBIfobia etc. Mas também, como veremos, pode se tratar de estigmatizações por motivos políticos.

»A exacerbação de diferença assim criada modifica a dicotomia de Van Dijk “nós x eles” para uma crença-convicção ainda maior da impossibilidade de coexistir com esse “outro”, que se expressa na fórmula “ou nós, ou eles”. Muitas vezes, como veremos no corpus, o discurso de ódio serve para auto-vitimizar o “sujeito-odiante” mediante a acusação, direta ou velada, de que todos os males de que ele padece são consequência da existência desse “outro” ou de seus “privilégios”, que considera insuportáveis. Tal fórmula chega ao ponto máximo quando os enunciados expressam literalmente o desejo de não-existência desse “outro”, um desejo tanático que impossibilita toda compreensão da diversidade, da reflexão e do diálogo.

»O aspecto mais grave na propagação desse tipo de discurso é que ele, muitas vezes, camufla-se de uma retórica aceita pela sociedade que, por exemplo, se embasa no direito à liberdade de expressão e que, amiúde, sob argumentos falazes, é simplesmente a atualização de preconceitos internalizados de longa data.



»O efeito descortês dos discursos de ódio

»A cortesia é uma norma social regulada por condutas que durante a interação busca prevenir e proteger a imagem dos interlocutores. Por outro lado, a partir do momento em que violamos as regras, colocando em risco a imagem do outro, temos a descortesia, que, segundo Culpeper (2011), pode ser consciente ou inconsciente. Segundo ele (2011, p. 19), “a descortesia ocorre quando: (1) o falante comunica intencionalmente o ataque à imagem, ou (2) o ouvinte percebe e/ou constrói o comportamento como intencionalmente de ataque à imagem, ou uma combinação de (1) e (2)”.

»Tanto nos estudos da cortesia como da descortesia (e, segundo Zimmermann (2005), também da “anticortesia”) o conceito de imagem (face em inglês) apresenta um caráter central. A esse respeito, os primeiros estudos foram iniciados por Goffman (1967[2011]) e retomados por Brown e Levinson (1978[1987]) na sua teoria da cortesia universal, criticada por autores de culturas não anglo-saxãs devido, entre outros problemas: a) ao risco de etnocentrismo ante a pretensão de universalidade de seus postulados; b) por deixar de fora da análise os atos que realçam a imagem do interlocutor; c) por não abordar o fenômeno da descortesia (BERNAL, 2005, p. 369) e da anticortesia; e d) por não dar devida atenção ao fenômeno da intensificação cortês. Estudos posteriores, como o de Bravo (1999), o de Kebrat-Orecchioni (1992), o de Briz (2004), o de Marlangeon (2005) e o de Albelda (2005), questionaram a universalidade da teoria brownlevisioniana e salientaram o papel do contexto sociocultural e da própria interação na proteção ou na ofensa à imagem. Assim, o presente artigo se alinha com essa visão mais ampla de compreensão da imagem.

»O contexto, segundo Van Dijk (2012, p. 34), como conceito para o estudo das teorias da língua, deve partir do princípio de que é um construto subjetivo dos participantes, no qual as “situações sociais só conseguem influenciar o discurso através de interpretações (intersubjetivas) que delas fazem os participantes”. O autor informa que esse construto faz parte de um modelo mental, individual, e não só situacional. Destarte, a compreensão do discurso “envolve a construção controlada pelo contexto, de modelos mentais baseados em inferências fundamentadas no conhecimento” (VAN DIJK, 2012, p. 92).

»Assim, os modelos mentais são relevantes para a coerência do discurso, uma vez que são únicos e exprimem opiniões e emoções ao ativarem a memória individual e social, além de serem agentes formadores da identidade na construção do eu-mesmo e do ele-mesmo (VAN DIJK, 2012).

»Nesse sentido, para entendermos a descortesia e sua dimensão, Marlangeon (2012) enfatiza que é preciso nos ater ao contexto, pois nem sempre o que se considera descortês em determinada situação comunicativa o é de fato. Quanto ao contexto, em nosso trabalho, importam-nos o geral e o do evento comunicativo específico, ou seja, aquele no qual foram proferidos os enunciados.

»Neste estudo, tomaremos, da tipologia de descortesia proposta pela autora (2012, p. 10-14), dois conceitos, a saber:

»A) A descortesia por fustigação, representativa da atitude de ofensa deliberada proferida pelo locutor ao interlocutor e que busca o confronto no discurso. A autora a define como agressão verbal constituída em sua maioria por “comportamentos volitivos, conscientes e estratégicos”, cuja finalidade é de ferir a imagem do interlocutor como resposta a uma situação de enfrentamento ou desafio, ou como início dela.

»Quando o discurso enfatiza o desrespeito extremo, rompendo as convenções sociais, estamos diante do ódio expresso que, ao estigmatizar o “outro”, cria a exclusão de sujeitos ou de grupos sociais. Na descortesia por fustigação, quanto maior for o nível de lesão à imagem do destinatário, maior é a intensidade emocional do falante, “manifestada por certos indicadores de entonação e expressões verbais emocionais negativas” (MARLANGEON, 2017, p. 11).

»Esse tipo de descortesia se caracteriza pela finalidade de “dominação ou intento de dominação”, uma vez que, segundo a autora (2017, p. 13),

»“quien enfrenta, desafía o agrede al destinatario, lo hace desde la superioridad provocativa de pretender imponer su propia cosmovisión o requerimientos de imagen por sobre los del oyente, pues sin reclamo de poder, no hay descortesía”.

»B) Descortesia por excesso de afiliação ou afiliação exacerbada é uma variante proposta pela autora, na qual o conceito de descortesia dá-se quando “o adepto assume sua qualidade de membro com plena consciência e orgulho. Ele é a favor dos membros e das ideias de seu grupo, a ponto de escolher a descortesia em sua defesa.” (MARLANGEON, 2005, p. 302).

»No mesmo sentido, Van Dijk (2005, p. 27) aponta a criação, com fins antinômicos, do antagonismo maniqueísta entre “o nós” e “o eles”, no qual o “nós” é depositário de todas as qualidades socialmente relevantes e o “eles” é privado destas.



»Metodologia, corpus e contexto

»O corpus para este estudo será formado pelos discursos de ódio, escritos e orais, de vídeos e de fotos de cartazes veiculados em várias revistas, sites e blogs que documentaram os eventos das manifestações ocorridas na Argentina, conhecidas como “Cacerolazos” (2013-2014), e das sucedidas no Brasil, denominadas de “Panelaços” (2015-2016).

»Foram analisados 6 vídeos da Argentina, num total de 67’53”; e 9 vídeos do Brasil, num total de 38’29” das plataformas YouTube (06 da Argentina e 03 do Brasil) e Vimeo (02 no Brasil), e da rede social Facebook (04 do Brasil).

»Desse modo, o método de análise é quantitativo com a seleção de enunciados de vídeos e de cartazes, bem como qualitativo, na medida em que a análise busca um eixo comum para explicar o fenômeno do ódio por meio das categorizações que foram explicitadas no item anterior.



»Contexto das manifestações “Cacerolazos” e “Panelaços”

»Quanto ao contexto sócio-histórico no qual as manifestações que analisaremos se desenvolveram, sumariamente apontaremos alguns paralelismos entre a Argentina e o Brasil: a) em matéria social, ambos os países criaram planos assistenciais para os setores mais desfavorecidos (Bolsa família e AUH); políticas de valorização do salário mínimo; criminalização do feminicídio; casamento igualitário; programas habitacionais (Minha casa, minha vida e PRO.CRE.AR); políticas de pleno emprego; criação de escolas e universidades etc.

»b) no plano econômico: políticas de desendividamento externo; favorecimento do mercado interno para impulsionar o desenvolvimento econômico; política de crédito ativo para os setores produtivos etc.

»c) na política exterior: diplomacia menos alinhada aos interesses dos EUA e mais voltada para a África e América Latina. Destacam-se a criação da UNASUL (União das Nações Sul-Americanas) e da CELAC (Comunidade dos Estados Latino americanos e Caribenhos).

»Diretamente ou não, muitas dessas realizações serão vistas como pontos negativos nos discursos das manifestações, como veremos oportunamente.

»Referente ao contexto específico das manifestações na Argentina, logo após mobilizações protagonizadas por dirigentes agropecuários contrários a uma medida governamental, começaram a acontecer manifestações “autoconvocadas” por setores das classes alta e média alta de Buenos Aires, que foram se espalhando por outras capitais e grandes cidades, ao som do bater de panelas. Os motivos das reivindicações iam desde flexibilização da política cambial até reclamações por suposta falta de liberdade. Junto com o som das panelas apareceram manifestações de uma agressividade explícita tanto contra a presidenta Cristina Fernández quanto à agrupação política “La Cámpora”, braço juvenil do partido governante. Essas manifestações alcançaram grau de massividade em 2012 e logo foram definhando paulatinamente. Foram conhecidas como #13S #8N #18A #8A #13N y #18F aludindo às datas de sua realização.

»Em 2015 e 2016, no Brasil, o mesmo tipo de manifestações ganhou as ruas também de capitais e de grandes cidades brasileiras, com o mesmo teor de agressividade contra a presidenta Dilma Rousseff e o Partido dos Trabalhadores. Embora alguns autores tentem estabelecer uma relação de causa-efeito entre essas mobilizações com as de 2013, elas tiveram protagonistas, objetivos e pautas reivindicatórias totalmente diferentes. Como explica o professor Calil (2016), nas primeiras

»“se colocaram em pauta demandas por ampliação da democracia, denúncia da repressão policial e reivindicação por direitos sociais e melhores serviços públicos. Em síntese, demandas de qualificação da democracia e em defesa do Estado social”.

»Já nas segundas, conforme o autor, à defesa do impeachment misturaram-se “posições fascistizantes”, de “regeneração da ditadura”, hostilização pública da esquerda e mobilizações golpistas sob distintas formas, como a reivindicação por “intervenção militar”.

»Por parte dos manifestantes – e até dos organizadores – dos dois países existiu um empenho imenso no plano da retórica, com o intuito de se apropriar de algumas das características dos movimentos sociais da África, da Europa e dos Estados Unidos, tais como Indignados, na Espanha, e Occupy, nos Estados Unidos. Uma das primeiras coisas que devemos apontar é que tinham algo em comum: desenvolveram-se em espaços públicos. Segundo Della Porta (2015, p. 15), no ano de 2011, em poucos meses apareceu em 3 continentes (África, Europa e América do Norte) uma forma de protesto que se desenvolvia, precisamente, nas praças. Quanto à centralidade do espaço público, Valdés (2015, p. 8) aponta que

»“en todos estos casos […] los manifestantes ocupan el espacio público para transmitir sus reclamaciones en lugar de utilizar los mecanismos de intermediación política, esencialmente los partidos políticos, que son considerados elementos importantes de los sistemas democráticos. Por lo tanto, la protesta social es también indicación de una percepción que pasa por alto esos mecanismos y su rol en las democracias”.

»No plano estético desse ocupar o espaço também houve preocupação por se mimetizar como os movimentos sociais transatlânticos. Por exemplo, se na praça Tahrir, em El Cairo, Egito, só podiam estar as cores da bandeira daquele país, o mesmo aconteceu nas manifestações na Argentina e no Brasil, nas quais só apareceram símbolos pátrios, como bandeiras e camisetas de futebol por expresso pedido dos organizadores.

»Por outro lado, embora os organizadores das manifestações nos dois países proclamassem insistentemente o caráter de serem “autoconvocadas”, sabia-se que isso não era real. O papel das redes sociais nas manifestações foi essencial nos dois países. Na Argentina participaram das convocatórias, da logística e da organização as páginas de Facebook: Yo no vote a la Kretina y Ud, Argentinos indignados, el Anti k, No más K, Unamos nuestros votos e El cipayo. A “independência” dessas páginas é muito questionável. O criador da página de Facebook el anti-K denunciou que a única manifestação realmente autoconvocada foi a primeira, já que depois a página foi cooptada por militantes do partido PRO, do atual presidente Mauricio Macri, prefeito de Buenos Aires à época.

»No Brasil, as comunidades virtuais organizadoras das mobilizações tampouco eram transparentes. Uma das mais atuantes, o Movimento Brasil Livre – MBL –, foi uma marca “criada” pelo “Estudantes pela Liberdade” – EPL –, que recebia contribuições de organizações norte-americanas como Atlas e Student For Liberty, para, com este novo nome, “participar das manifestações de rua sem comprometer as organizações americanas”, que foram impedidas de doar recursos para ativistas políticos pela legislação impositiva de seu país de origem.



»Considerações finais

»Tínhamos como objetivo mostrar como as expressões de ódio contidas nos enunciados proferidos nas manifestações contra o governo de Cristina Kirchner e de Dilma Rousseff, conhecidos como “Cacerolazos” (2012-2014) e “Panelaços” (2015-2016), tentaram se apropriar de certo tipo de discurso, no caso o de ódio, para operar de forma a usar a emoção, e não a eloquência racional para a imposição de pautas argumentativas de teor político e social.

»O discurso de ódio mostrou-se como um reprodutor ideológico de formas e conteúdos marcados por atitudes e crenças consolidadas, muitas vezes estereotipadas, da apropriação histórica dos países em questão. Assim, ao percebemos a dicotomia, pautada por Van Dijk, entre o “nós” e “eles”, vimos nos discursos apresentados o reforço de uma divisão, marcada linguisticamente, por termos que separam, segregam ou dividem os interlocutores.

»Vimos também que se repetiram, nas manifestações em ambos os países, os mesmos tipos de argumentos empregados para articular enunciados descorteses, a mesma gramática das imagens e, por vezes, até os mesmos significantes, com estruturas linguísticas muitas vezes especulares.

»Dessa forma, observamos o emprego de modo distópico de significantes como: “comunista”, “Cuba”, “Venezuela” etc. como sinônimos de ditadura, falta de liberdade e opressão. Também, mediante autovitimizações (descortesia por afiliação exacerbada) ou acusações a um “outro” (descortesia por fustigação) de ser a causa dos próprios males, supostamente por usufruir sem direito de benefícios sociais à custa dos enunciadores. Nessa última estratégia de descortesia, merecem especial menção os ataques à honra das mandatárias, chegando ao ponto de configurarem agressões de teor sexual. Por fim, chega-se ao grau máximo de ódio nos enunciados que expressam o desejo da não existência do “outro”.

»Por tudo isso, tanto a ira contra as mandatárias quanto o sentimento de injustiça auto-atribuído por suposta falta de liberdade ou por injusta divisão dos bens materiais nos possibilita concluir que o fio comum que organizou simbolicamente e deu sentido político às manifestações de “caceroleros” e de “paneleiros” foi um sentimento de ódio que exacerbou o “eu” e, ao mesmo tempo, deslegitimou a existência do “outro”».





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