octubre 18, 2016

«José Lino – toda a vida fui tipógrafo»



Carlos Cipriano
Gazeta das Caldas @GazetadasCaldas




«Foi aqui que aos 13 anos comecei a trabalhar na tipografia
que esteve na origem da Gracal | C.C.»




«Era neste local, na rua do Hospício, que a Tipografia Caldense imprimia e encadernava os seus trabalhos. O trabalho de composição era feito na rua José Malhoa, onde a empresa também tinha uma papelaria. E eu, com os meus 13 anitos, andava cá e lá a trazer as folhas de zinco para a impressão. Fazíamos aqui folhetos, cartazes, brochuras e jornais, entre eles a Gazeta das Caldas.

»85 ANOS

»CASADO, 1 FILHA E 2 NETOS

»Nasci em 16 de Abril de 1931 na rua General Queirós e vivi toda a vida nas Caldas. É certo que a tropa levou-me a percorrer o país durante 18 meses e que tive umas curtas estadias em Torres Vedras e Mira de Aire, mas esta foi sempre a minha terra e onde só tive uma profissão – tipógrafo.

»Andei na escola primária ali ao pé da antiga polícia de trânsito (junto à antiga SECLA) e aprendi com o professor Sá até à 3ª classe, que não concluí. Passei para o professor Faria, mas este reformou-se a meio do ano e tive que ir para o Colégio Caldense, na Rua Dr. Miguel Bombarda, onde fiz de uma assentada a 3ª e a 4ª classe. Mas com isto tudo acabei a instrução primária já com 13 anos. Estávamos em 1944 e por esta altura Caldas da Rainha estava cheia de refugiados estrangeiros que fugiam da II Guerra Mundial. Eu era amigo da Helga Liné – que viria a ser uma actriz famosa – e do seu irmão Nicolau. Eles viviam com a mãe e o padastro na rua dos Loureiros e eu frequentava a casa. Lembro-me muito bem deles. Ela era lindíssima e à mãe também. Já nessa altura mãe e filha faziam espectáculos de contorcionismo no Casino.

»O ambiente na cidade era requintado e até um miúdo como eu se apercebia do tremendo impacto provocado pelos hábitos e costumes dos estrangeiros que aqui viviam. Eram gente fina. As mulheres vestiam calças, frequentavam os cafés, fumavam. Enfim, aquilo foi uma época de luxo.

»Naquele tempo ter a 4ª classe era como ter um curso e ia-se logo trabalhar. Eu estive um mês no João Serafim Moreira, que tinha uma loja de fazendas na rua das Montras. Ele dava-me dez tostões (meio cêntimo de euro) por dia. Aquilo não dava nem para as solas dos sapatos quando ia buscar encomendas à estação.

»Por isso mudei-me logo para a tipografia do José Dias (que está na origem da actual Gracal) onde me pagavam 150 escudos por mês (0,75 euros). A firma chamava-se José da Silva Dias, Lda. e era conhecida por Tipografia Caldense. Estive uns tempos no balcão da papelaria e depois na encadernação até que finalmente saltei para a tipografia propriamente dita onde aprendi o ofício que viria a ser o meu ganha pão.



»Retirávamos as letras à mão, uma a uma, para formar palavras e frases

»A tipografia tinha sempre muito trabalho. Faziam-se facturas e recibos, cartões de visita, brochuras, prospectos, cartazes, jornais. Os cartazes a anunciar o circo, os jogos do Caldas ou as sessões dos cinemas Ibéria e Pinheiro Chagas saíam daqui e eu fiz muitos deles. E também O Progresso e a Gazeta das Caldas me passavam pelas mãos.

»Os caracteres, feitos em chumbo, eram guardados em caixas de madeira com divisórias onde se distribuíam as letras. Chamávamos-lhes “caixas de tipos” e retirávamos as letras à mão, uma a uma, para formar palavras e frases, devidamente justificadas e separadas por espaços para que na impressão ficasse tudo alinhadinho. Os textos assim fabricados eram colocados num compenedor e levados para uma galé, que era uma folha de zinco que servia de suporte à paginação.

»As imagens – fossem fotografias ou desenhos – entravam sob a forma de zincogravuras, que tinham de ser mandadas fazer em Lisboa.

»Só depois o jornal, ou o cartaz, ou a brochura, iam para a impressão. As páginas da Gazeta das Caldas eram feitas uma a uma e no fim juntavam-se para formar o jornal. E nós imprimíamos a dar à manivela. Lembro-me que cheguei a ir à pressa ao escritório do Dr. Saudade e Silva, que era o director da Gazeta, para que o Hermínio de Oliveira, que tinha pretensões a jornalista, escrevesse um artigo a correr a fim de tapar algum buraco na paginação. Velhos tempos...

»Eu gostava muito daquilo e fazia questão em criar um prospecto ou um cartaz de forma a ter algo de original, gostava de fazer diferente.

»Quando fiz 21 anos fui chamado para a tropa. Corria o ano de 1952 e recebi uma guia de marcha para me apresentar em Tavira. Só do Barreiro ao Algarve demorava-se uma noite inteira de comboio. Eu até dormia nas redes das bagageiras, embalado pelos solavancos da carruagem, o resfolgar da locomotiva e os silvos que ecoavam na planície pela noite fora.

»Em Tavira fiz o curso de sargento miliciano porque eu entretanto estudara à noite na Escola Comercial e Industrial Rafael Bordalo Pinheiro (que ficava atrás do Chafariz das 5 Bicas). O curso comercial sempre me serviu para não ser soldado raso.

»A tropa levou-me depois para Mafra e mais tarde para Vila Real de Trás-os-Montes. Ainda me lembro do comboio de via estreita a serpentear pela serra e o rio Corgo lá em baixo. Fiquei lá meses. Para vir às Caldas saía de lá às cinco da manhã para chegar cá às dez da noite.



»Finda a tropa era altura de casar

»Finda a tropa era altura de casar. Era esse o percurso habitual dos rapazes naquele tempo. Eu tinha conhecido a Maria de Jesus na Tipografia Caldense porque ela trabalhava na loja. Começámos a namoriscar e casámos em 1955.

»O facto de ter uma família tornou-me mais ambicioso e levou-me a procurar trabalho em Torres Vedras, onde sempre se ganhava mais qualquer coisa. Estive uns tempos na Tipografia Grilo e depois ingressei na Gráfica Torreense onde já me pagavam 1250 escudos por mês (6,26 euros). Ao fim de dois meses eu já era encarregado porque os patrões viram que eu percebia daquilo. É que quando uma pessoa gosta do que faz, acaba por fazer bem. Era o meu caso.

»Mas só fiquei um ano em Torres Vedras. A escala seguinte foi uma gráfica em Mira de Aire onde também fui encarregado. Entretanto, nas Caldas, a tipografia do José Dias (Tipografia Caldense) já não era o que era. Os herdeiros do proprietário tinham-na vendido ao José Mineiro que, logo na altura, criou uma sociedade para os filhos, Henrique e Maria Inês Mineiro. Os novos patrões mudaram as instalações para a rua do Jardim, mas decidiram montar uma tipografia moderna na Rua do Moinho Vento – a Gracal.

»Foram então ter comigo a Mira de Aire para me convencer a trabalhar com eles. Acenaram-me com 5% da quota e 3000 escudos de ordenado (15 euros) e eu aceitei. Comigo entraram também o Hernâni da Conceição e o Fernando Antunes, dois rapazes do meu tempo, que ficaram também com 5% de quota cada um. A família Mineiro passou a deter 85% da empresa.

»A Gracal é inaugurada em 1968 na rua Moinho de Vento. Era uma coisa como deve de ser, com máquinas novas e só comparável com a Tipografia A União, de Torres Vedras, que era uma das melhores da zona.

»Trabalhavam ali pouco mais de dez pessoas, mas a firma expandiu-se e chegaram a ser 20, até porque fomos sempre comprando máquinas novas e era preciso pessoal para trabalhar com elas.

»A tecnologia mudara. Na Gracal, em vez de trabalhar com chumbo, mudámos para o offset que era o último grito da moda. Agora escreviam-se os textos à máquina, inseríamos as fotografias e era tudo fotografado numa chapa que era posta na impressora.

»Era mais rápido, mais limpo, mais económico, mas devo dizer que hoje, aos 85 anos, tenho saudades é do tempo em que fazíamos a composição à mão com as letras de chumbo.



»Trabalhar com criativos

»Cheguei a trabalhar com o Ferreira da Silva que aparecia na Gracal para fazer cartazes. Era um tipo simpático, cheio de ideias. E também trabalhei com o José Aurélio e o Santa Bárbara. Eu às vezes dava umas ideias e eles aceitavam ou não porque os criativos eram eles. Mas acho que se fizeram ali coisas de qualidade, sobretudo cartazes para concursos e para os espectáculos do CCC (Conjunto Cénico Caldense), do qual eu também fiz parte.

»Sim, porque houve um período da minha vida em que eu fui actor de teatro. Comecei por ser ponto e depois participei em peças como O Morgado de Fafe Amoroso e o Auto da Compadecida. Cheguei a ir em digressão a Coimbra, Covilhã, Leiria, Tomar e várias vezes ao Teatro da Trindade (Lisboa).

»Na Gracal eu era encarregado e quando foi o 25 de Abril passei lá um mau bocado devido à excitação e aos exageros da época – comissões de trabalhadores, sindicatos, reivindicações. A dada altura estava sozinho na gestão da gráfica, mas depois as coisas acalmaram e a empresa recuperou.

»Reformei-me em 1986, por invalidez porque tenho uns problemas de saúde na coluna. Ainda lá fiquei uns tempos, mas depois abandonei definitivamente a Gracal.

»A par de tipógrafo tive também alguma vida associativa na cidade. Fui eu que reactivei, com o Adelino Mamede, a Banda Comércio e Indústria e fiz parte das direcções do Montepio, do Caldas e da secção de Xadrez do Sporting Clube das Caldas. Aliás, ainda hoje gosto de jogar umas partidas com o meu amigo Custódio Freitas, com quem passo uns bons bocados.

»Agora vou vivendo um dia de cada vez. Levanto-me sempre cedo, vou à Praça da Fruta, converso com os meus amigos, bebemos um café e assim se passa a manhã. Almoço em casa e à tarde invento qualquer coisa para me distrair. No Verão é mais fácil porque vou à praia sempre que posso e até agora, pelo Outubro dentro, enquanto estiver bom tempo, dou uma voltinha e vou à Foz do Arelho ou ao Baleal. Quando o Inverno chegar é que é pior, mas arranjo sempre maneira de me entreter.»





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