Thiago Borges
«O tempo e os mapas: formas, percepções e representações do tempo nos mappaemundi medievais»
Eikón Imago, vol. 5, n.º 1, 2016
| Universidad Complutense de Madrid | Departamento de Historia del Arte I (Medieval) | Grupo de Investigación CAPIRE (Colectivo para el Análisis Pluridisciplinar de la Iconografía Religiosa Europea) | Madrid | ESPAÑA
Extracto de los apartados 1 y 3 de la publicación en PDF. Véanse las referencias bibliográficas en la publicación original del texto.
«A historicidade do tempo medieval, um breve percurso teórico
»Cerca de quinze séculos separam as Confissões de Agostinho e os recentes desdobramentos da teoria quântica de Einstein e Hawking. Entretanto, para além das especificidades que permeiam estas duas realidades – que facilmente tornariam esta comparação incoerente e incabível –, uma similitude nos desperta particular atenção: a busca e o interesse ininterrupto das sociedades humanas em compreender e explicar as formas, os limites e os sentidos do tempo. Formas de um tempo histórico, mitológico, ontológico e natural que, na exatidão meticulosa de nossa era, se curva aos direcionamentos e exigências de um tempo imediatista, humano, racionalizado e relativizado. Tempo capaz de assimilar as sutilezas de suas próprias temporalidades, que se mantém dependente das subjetividades humanas e das oscilações sociais e que, entre a religiosidade e a ciência, traduz os discursos e intenções de uma dimensão socialmente construída pelas relações de dominância e poder que regem os homens e o tempo.
»Seria mais plausível, portanto, pensarmos não somente no tempo da história, mas sim, nos tempos da história, uma vez que as formas, os conceitos e as percepções do tempo variam, impreterivelmente, em consonância com os processos resultantes das dinâmicas humanas em sua contínua relação com o tempo e o espaço. Destituído de seu caráter absoluto, estas percepções assumem, no curso da história, uma multiplicidade de sentidos e simbolismos que se estendem entre a ciclicidade do eterno retorno e a linearidade do continuum temporum, consolidando-se, no âmbito da historiografia contemporânea, como “uma grandeza que se modifica com a história, e cuja modificação pode ser deduzida da coordenação variável entre experiência e expectativa”.
»Assim, enquanto aos olhos do historiador o tempo se constitui “como uma floresta para dentro da qual os homens, pela narrativa histórica, lançam seu clamor, a fim de compreenderem [...] o que lhes é presente sob a forma de experiência do tempo e poderem esperar projetar um futuro com sentido”, para o homem medieval, por outro lado, a tônica concentrava-se na brevidade incalculável de um tempo sufocado entre o prestígio de um passado idealizado e a inquietante espera dos últimos dias. Assim, para Agostinho, quod autem nunc liquet et clarete, nec futura sunt nec praeterita, nec proprie dicitur: tempora sunt tria, praeteritum, praesens et futurum, sed fortasse proprie diceretur: tempora sunt tria praesens de praeteritis, praesens de praesentibus, praesens de futuris. Sunt enim haec anima tria quaedam et alibi ea non uideo praesens de praeteritis memoria, praesens de praesentibus contuitus, praesens de futuris expectatio.
»São estas fronteiras aparente imóveis do tempo medieval que particularmente nos interessam neste breve estudo. Tempo de um presente contínuo e impreciso, capaz de reviver e relembrar, nas celebrações profanas ou nos rituais litúrgicos, as reminiscências do passado mais longínquo. Tempo de uma sociedade dual e plural que experimentou uma vasta indiferença pelo tempo e que não conheceu, em absoluto, uma verdade cronológica única e incontestável. Que vivenciou o tempo das cronologias, genealogias e hagiografias, o tempo dos anais e das crônicas universais, o tempo das cidades, dos mercadores e oradores. É preciso, portanto, não perder de vista o caráter essencialmente dualista e simbólico que deriva das percepções temporais no Ocidente medieval cristão que, como nas demais sociedades tradicionais, “é dominada pelo passado, referência ideal de legitimação dos fatos presentes, mas, como veremos adiante, acrescenta ai o peso esmagador do futuro, sob a forma de espera escatológica de um além-eterno”.
»Passado, presente e futuro situam-se em um plano aparentemente homogêneo e linear, de tal modo que, para estas sociedades, as realidades presentes parecem não se separar daquilo que já foi e daquilo que há de vir. Estamos diante de uma multiplicidade de tempos percebidos, pensados e vividos em que a narrativa bíblica se entrelaça naturalmente a temporalidade cotidiana dos homens, remarcando a historicidade comumente atribuída a personagens e eventos que coexistem em planos distintos. No âmbito do pensamento religioso, portanto, “o tempo não é nem homogêneo nem contínuo; há, por um lado, os intervalos de tempo sagrado, o tempo das festas e, por outro, há o tempo profano, a duração ordinária na qual se inscrevem os atos privados de significado religioso”.
»Realidades aparentemente tão contrastantes que, no entanto, confluem sobre um mesmo regime de historicidade, pois, como assinala Philippe Ariès, “nenhuma outra religião, no Ocidente ou no Oriente, se definia, segundo seus textos essenciais, verdadeiramente como uma História”. História gestada, orientada e santificada que, no Ocidente medieval, ia além da percepção do tempo histórico, “visto que Deus encarnou, isto é, que assumiu uma existência humana historicamente condicionada, a História torna-se suscetível de ser santificada”. Esta constante e contrastante dualidade estabelecida entre os homens medievais e o seu tempo se constitui, no presente momento, como nosso principal foco de interesse, apreciação e análise. Assim, entre a ciclicidade do tempo litúrgico e a linearidade do tempo bíblico, passaremos ao reconhecimento das formas e dos simbolismos atribuídos, no âmbito da cartografia medieval, aos conceitos, percepções e representações do tempo no Ocidente medieval cristão.
»[...]
»O tempo e os mapas
»Nos limites de um universo simbólico e atemporal, em que elementos bíblicos, históricos, reais e imaginários coexistem em um plano perfeitamente homogêneo, a cartografia medieval se estrutura a partir de uma extraordinária montagem de tempos heterogêneos que, entre o realismo e o simbolismo, constituem verdadeiros mosaicos de memórias, eventos e tradições que remontam aos mais remotos primórdios da história cristã. Por seu gosto enciclopédico, estas singulares expressões da cultura medieval oscilam naturalmente entre o peso da tradição e as especificidades de seus contextos circundantes e, portanto, não devem ser sistematizadas como meros instrumentos operativos, uma vez que, nestes casos, o tempo e o espaço adquirem uma fisionomia essencialmente vinculada a uma “estrutura alegórica, com referências apenas ocasionais à conformação terrestre, mesmo quando era perfeitamente conhecida”.
»Com um olhar voltado para uma realidade distinta, estes mapas-múndi assumem o duplo papel de “descrição legítima e legitimadora de uma peculiar imagem do mundo, pois foram construídos com o amparo em autoridades clássicas e eclesiásticas, e com a função de reafirmar os eixos principais desta imagem”. Fundamentado por uma infinidade de fontes e tradições, seria mais razoável, portanto, pensarmos estes manuscritos como uma espécie de crônica, que “não somente atraiu informações herdadas do exemplar que lhe serve de modelo imediato, mas também foi aberto a adições e subtrações inspiradas pelo local de interesse por parte do cartógrafo ou do patrono”.
»É necessário, portanto, compreendermos esta dicotomia espaço-temporal sob uma dupla perspectiva analítica: uma objetiva, imediata e sensitiva; outra subjetiva e intimamente dependente dos códigos mentais, das lógicas culturais e das práticas sociais de cada civilização em particular. Pois, longe de serem representações inócuas e puramente estéticas, essas imagens participam e influenciam determinantemente nas relações sociais e, sobretudo, “nas relações entre os homens de seu tempo e o mundo sobrenatural”. Assim, é importante considerarmos que, aquilo que para nós é falso não o era para os homens dessa época, era, antes de tudo, “a verdade suprema em torno da qual se agrupavam todas as suas representações e as suas ideias, uma verdade à qual se referiam todos os seus valores culturais e sociais”. Neste contexto de sensibilidades e verdades ambivalentes, a realidade cotidiana se confundia, uma vez mais, no tempo e no espaço, com a universalidade e a sacralidade da história cristã.
»Sob tais perspectivas, compreendemos que a cartografia medieval se diferencia das demais tradições cartográficas pela importância e pelo destaque iconográfico comumente atribuído às representações de seus espaços sagrados, elemento que, do texto à imagem, tornou possível a constituição e consolidação de uma nova imagem do mundo, capaz de convergir o realismo sensitivo do mundo profano e os simbolismos próprios do universo sagrado. Diante destas imagines mundi o homem se via, portanto, diante da própria história do mundo, relembrando e contemplando, por intermédio das imagens, tudo aquilo que, para muitos, estava acessível somente pela leitura dos textos canônicos. Esta dimensão pragmática e funcional, que permanece subscrita nos longos traços que compõem um mapa-múndi medieval, nos remete a célebre fórmula de Gregório Magno que, em princípios do século VI, exaltava o poder didático e doutrinário das imagens sagradas: “ab re non facimus si per visibilia invisibilia demonstramus”.
»Tomadas por este prisma, as representações de Adão e Eva no centro do Jardim do Éden, da Arca de Noé junto ao Monte Ararat, do Mar Vermelho, da Torre de Babel, das terras amaldiçoadas de Gog e Magog ou da Terra Santa de Jerusalém assumem, nestes contextos, sentidos e simbolismos que evidentemente perpassam a simples referência espacial de seus limites espaciais. Entretanto, frente à diversidade de símbolos e formas que estas representações assumem em contextos específicos, algumas considerações tornam-se particularmente relevantes.
»De início, o Paraíso, que, seguindo estritamente o texto bíblico, é sempre representado no extremo Oriente da carta. Ali, “onde o Senhor situou o Jardim do Éden”, observa-se a ocorrência de pelo menos dois padrões figurativos distintos que, ademais de suas especificidades iconográficas, encontram-se igualmente fundamentados pelo texto bíblico. A este respeito, Aires do Nascimento assinala que “a iconografia que acompanha a narrativa bíblica das origens apresenta uma multiplicidade de aproveitamentos da narrativa genesíaca e sobrepõem-lhe leituras particulares” que, em muitos casos, perpassam o campo das interpretações textuais e recebem, no universo das representações cartográficas medievais, novos e instigantes sentidos.
»No grande mapa-múndi de Ebstorf (c. 1234), por exemplo, o Jardim do Éden situa-se em um espaço distinto, inacessível aos homens, pois, como ressalta Gervásio de Tilbury, seus limites encontram-se “a nostra habitabile regione segregatus”. Seguindo estritamente as descrições de Gênesis 2:1-17, o mapa de Ebstorf representa as figuras de Adão e Eva no interior do Jardim, remetendo, portanto, a uma temporalidade anterior a queda do homem, tempo da inocência humana e da obediência a Deus. Cercados pelas árvores e pelos quatro rios que fluem da fons paradisi, Adão e Eva são representados nus, próximos à Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal que ocupa o centro do Éden. Envolta no tronco desta grande árvore central, uma serpente de composição antropozoomórfica parece dialogar com Eva, relembrando, portanto, o advento da tentação e da corrupção do homem.
»Um segundo modelo figurativo, que em certa medida complementa o primeiro, faz-se pela representação do momento da expulsão de Adão e Eva do Paraíso. No âmbito da cartografia medieval, estas representações, que comumente seguem as descrições de Gênesis 3:23-24, podem ser verificadas, por exemplo, no mapa-múndi de Ranulf Higden, manuscrito do século XIV, que, de forma bem sutil, representa as figuras aparentemente envergonhadas de Adão e Eva caminhando para dentro dos limites da orbis terrarum, transitando, numa perspectiva simbólica, da eternidade do Paraíso para os limites temporais do mundo dos homens.
»Em outros manuscritos, entretanto, estas imagens são representadas de forma composta, destacando, em uma narrativa visual aparentemente única e linear, diferentes excertos do texto bíblico. Esta construção imagética pode ser visualizada no grande mapa-múndi que atualmente se conserva na Catedral de Hereford, em Inglaterra. Datado de finais do século XIII, este portentoso manuscrito converge em seus traços dois momentos distintos da narrativa edênica, transitando entre a pureza primordial e a degradação do gênero humano pelo ato de desobediência. No primeiro deles, Adão e Eva são representados no interior do Jardim do Éden, seguidos das tradicionais representações da Árvore, da Serpente e dos quatro rios fluem da fonte do paraíso. Logo abaixo, em um segundo momento, as figuras de Adão e Eva são representadas no exterior do Jardim, diante de um anjo que, por seu gesto, nega-lhes a entrada no Paraíso. Alocadas no topo do manuscrito, no extremo Oriente do mapa, estas representações parecem historicizar o advento do pecado original trazendo, para o tempo dos homens, as reminiscências de um evento que remonta aos primórdios da história bíblica.
»Numa perspectiva histórica, as implicações e interpretações decorrentes desta traditio pecatti fomentaram extensos embates teológicos desde os séculos iniciais da Idade Média, interferindo diretamente nas concepções relativas às propriedades da natureza e da liberdade humana. Agostinho, por exemplo, em repúdio as proposições heréticas do pelagianismo, recorre ao texto bíblico para advogar a ideia de que a corrupção da Criação se instituiu pela ação de um único homem e, pelo pecado, estabeleceu-se, entre os homens, a morte. O pecado tornava-se, então, original, algo inerente à própria natureza humana e somente poderia ser suplantado pela “intervenção decisiva e escatológica do Apocalipse”. Entretanto, em defesa de Cristo e da cristandade, Agostinho relembra que: “assim como pela falta de um só, resultou a condenação de todos os homens do mesmo modo, da obra de justiça de um só, resultou para todos os homens a justificação que traz a vida”.
»Do texto bíblico aos traçados cartográficos, a exaltação desta doutrina salvacionista faz-se visualmente presente, no caso do mapa de Hereford, pela representação, acima do círculo terrestre, em uma dimensão metahistórica, do Juízo Final, em que Cristo, tal como descrito no livro da Revelação, encontra-se em santidade diante das almas dos que serão julgadas por seus pecados. À sua direita, os anjos acolhem as almas daqueles que são encaminhados à Cidade de Deus, confirmando, assim, a promessa do apóstolo João; à esquerda, situam-se as almas daqueles que foram condenados aos tormentos do submundo e são amarrados e arrastados por criaturas demoníacas em direção ao inferno.
»Diante destas representações é interessante notar que, seguindo os tradicionais modelos figurativos do Juízo Final, no mapa-múndi de Hereford os corpos daqueles que são condenados ao inferno são representados totalmente desnudos, em nítido contraste com aqueles que, com os corpos recobertos, são levados para junto de Deus. Esta iconografia nos remete, uma vez mais, à obra de Santo Agostinho, o primeiro a atribuir uma forma corpórea às almas dos mortos, permitindo que estes pudessem sentir os prazeres ou os tormentos do além. No universo das representações figurativas medievais, esta similitudo corporis era simbolizada, portanto, pela pureza associada às vestes que cobriam os corpos dos bons e a nudez que execrava e condenava os corpos dos maus51. Assim, entre a idealização das origens e as expectativas do fim dos tempos, estes manuscritos foram capazes de tornar visível toda a história da humanidade transitando, com aparente naturalidade, entre diferentes estratos temporais.»
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