Simone Schmidt
«Uma viagem longa demais, um retorno devastador»
Abril. Revista de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana,
vol. 8, n.º 16, 2016
Número dedicado a: «Viagem, deslocamentos, diferença»
Abril. Revista do Estudos de Literatura Portuguesa e Africana | Universidade Federal Fluminense (UFF) | Instituto de Letras | Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana (NEPA) | Niterói | Rio de Janeiro | BRASIL
Extracto de páginas 120-122 y 131-132 de la publicación en PDF
«Quando, em 1975, declararam-se oficialmente independentes os países africanos que, após mais de uma década de lutas, enfim se libertavam do poder colonial exercido pelo Estado português, um novo momento se inaugurava para todos. E, como não poderia deixar de ser, se para as nações recém- independentes, como Angola e Moçambique, este novo momento trazia profundas transformações que transbordavam do social e político para todas as esferas da vida, o mesmo veio a acontecer, em grau talvez menos intenso mas igualmente significativo, com a antiga metrópole.
»Com a independência de suas ex-colônias, Portugal encarava o fim do seu imperialismo tardio, mantido pela força ditatorial de Salazar e visivelmente desgastado, tendo em seu último período sobrevivido às custas de um imaginário imperialista que muito custou à população1. A bem da verdade, desde muito antes, o império português era já marcado por este forte componente imaginário. Como Eduardo Lourenço analisou exemplarmente em O labirinto da saudade, “Poucos países fabricaram acerca de si mesmos uma imagem tão idílica como Portugal. O anterior regime atingiu nesse domínio cumes inacessíveis, mas a herança é mais antiga e o seu eco perdura (LOURENÇO, 1982, p. 79 [O labirinto da saudade. Psicanálise mítica do destino português. 2.ed. Lisboa: Dom Quixote,]) [NOTA 2].
»O declínio desse ‘império’ se tornou incontestável principalmente a partir do novo momento histórico que no cenário internacional se inaugurara no pós-guerra, com o fim do colonialismo exercido pelos países europeus na África e na Ásia, e internamente, com o gradativo ocaso do salazarismo, culminando com a decadência física e a morte do ditador, e o fracasso político de seus seguidores.
»Um exemplo emblemático do grande impacto vivido por Portugal nesse período de mudanças encontramos na conhecida figura dos retornados – os portugueses que tiveram de migrar às pressas com o fim das guerras de libertação e a consequente independência das ex-colônias, após décadas de permanência em solo africano, empreendendo assim um ‘retorno’ à pátria que, de fato, não (ou não mais) lhes pertencia. Violentando sua identidade adaptada à vida na África, os retornados empreenderão uma espécie muito particular de viagem: a contragosto, precipitada por forças históricas que não aceitam e não compreendem, e em condições extremamente precárias. Não se sentem acolhidos pelo país ao qual retornam, como também não se sentiam inteiramente pertencentes aos países africanos em que viviam. Não sendo eles nem de um, nem de outro lugar, sua viagem de retorno assinala sua condição in between, tal como, em outro contexto, Homi Bhabha (1998, p. 19-42 [O local da cultura. Belo Horizonte, Editora UFMG]) configurou a identidade diaspórica dos sujeitos pós-coloniais.
»Quarenta anos se passaram desde a independência das ex-colônias de Portugal em território africano. Quarenta anos desde o fim das guerras de libertação, o fim do sonho de um império e o retorno dos portugueses. Muito já se disse sobre o retorno [NOTA 3], mas recentemente presenciamos um forte movimento de revisitação ao tema, seja numa perspectiva ainda marcada por certa nostalgia da ‘África perdida’ como assinala Margarida Calafate Ribeiro (2012, p. 92 [“O fim da história de regressos e o retorno a África: leituras da literatura contemporânea portuguesa”. In: BRUGIONI, Elena et al. (orgs). Itinerâncias. Percursos e representações da pós- -colonialidade. Braga: Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho]) , sobre autores como Ricardo Saavedra (Os dias do fim, 1995; 2008) e Carlos Vale Ferraz (Fala-me de África, 2007) [NOTA 4], seja num tom provocativamente crítico e demolidor acerca do sonho imperial, como vemos na escrita de uma geração de ‘filhos (ou filhas) do retorno’, de que as narrativas de Isabela Figueiredo (Caderno de memórias coloniais, 2009) [NOTA 5] e Dulce Maria Cardoso (O retorno, 2012) são exemplares [NOTA 6]. Coube à geração dos filhos daqueles que recolheram às pressas os seus pertences e cruzaram o mar de volta à metrópole recontar essa história em tom mais pessoal, subjetivo. Revisitar um capítulo tão doloroso da memória familiar foi uma espécie de desafio que os filhos e filhas do retorno assumiram como tarefa sua. Tinham eles pouco mais, pouco menos de dez anos, saíam da infância, e viveram com seus pais e irmãos a profunda transformação de suas vidas, ao mudar de casa, de país e continente, vindos dos países africanos onde haviam passado seus primeiros anos de formação.
»“Tinha 11 anos. Fui a minha primeira personagem. Achei sempre: vou contar isto, vou contar isto” (apud GOMES, 2015 [“Há retornados que acham que sou uma traidora”. Entrevista a Dulce Maria Cardoso. Público, 17 set. 2015. Disponível em: https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/dulce-1708071. Acesso em 6 fev. 2016]). As palavras de Dulce Maria Cardoso traduzem seu trabalho de recriação da memória, através da ficção, para executar aquilo que Isabela Figueiredo considera um “modo de sobrevivência”: “Tudo em mim cumpre a função da sobrevivência. É uma escolha dura, com custos emocionais elevados, contudo nunca me pareceu ser possível viver de outra forma” (FIGUEIREDO, 2011c [“Modo de sobrevivência”. Postagem em 2.out.2011. Disponível em http://novomundoperfeito.blogspot.com.br/search/label/Caderno%20 de%20Mem%C3%B3rias%20Coloniais. Acesso em 14.fev.2016.]).
»Emociono-me especialmente com essa geração de filhos que buscam, pela via da memória, recontar a experiência protagonizada por seus pais, para através desse exercício reencontrá-los, compreendê-los, e talvez perdoá-los. Emociono-me porque pertenço a uma geração que no Brasil dos anos 70 atravessava penosamente o umbral que nos expulsava da infância, e se lá, do outro lado do oceano, eles cumpriam sua passagem na amargura de um exílio forçado, por aqui amargávamos outros traumas, atravessados por sombras e silêncio.
»Este tomar para si a tarefa de juntar os cacos de uma memória familiar que de outro modo se perderia, ainda que pela chave da reinvenção (pois a memória, como lembra Isabela Figueiredo, adapta-se, trabalha-se, reescreve-se) (FIGUEIREDO, 2011b [“Das castas entre os retornados”. Postagem em 9.ago.2011. Disponível em http://novomundoperfeito.blogspot.com.br/2011_08_01_ archive.html. Acesso em 14.fev.2016.]), é trabalho realizado, de forma especialmente aguda, veemente, cortante, pela escrita de duas mulheres dessa geração. Isabela Figueiredo e Dulce Maria Cardoso, em seus romances Caderno de memórias coloniais (2009), e O retorno (2012), nos trazem de volta ao tema do retorno, abordando-o, segundo a crítica, como ‘um soco no estômago’ [NOTA 7], como “uma pedrada no charco [NOTA 8]”.
»É também pela chave da memória familiar que a cineasta Margarida Cardoso, em Natal 71, documentário realizado em 1999, revive os traumas forçadamente silenciados de uma puberdade forjada em meio à guerra colonial. Sobre a marca de um protagonismo autoral feminino incontestável nessa produção recente sobre o tema, é Margarida Cardoso quem nos traz algumas observações interessantes. Segundo a cineasta, o olhar feminino sobre essa experiência histórica acaba por ser um olhar dos “efeitos colaterais” do vivido, uma vez que atravessa a experiência não pelo meio da cena, mas por um olhar descentrado e poderíamos dizer em ricochete, porque visto pelo filtro da percepção de mulheres e crianças, “o lado mais fraco dessa história” [NOTA 9].
»[...]
»Dessas profundas transformações de ordem subjetiva, provocadas pelas experiências vividas em torno da ruína do projeto colonial, nos dá testemunho a geração dos filhos dos retornados. E de forma tão intensa misturam a experiência histórica, a vivência subjetiva e familiar e sua reinvenção ficcional que se tornou comum ouvir desses e dessas autoras a confissão de um certo sentimento de culpa por se sentirem traindo a memória silenciosa de seus pais, tal como se evidencia nos depoimentos de Isabela Figueiredo.
»Contudo, mais forte do que culpas e acertos de contas em família, certamente o que fica para nós, leitores, é podermos perscrutar de forma mais sensível, mais íntima, o que ficou por dizer nos cantos escuros da casa portuguesa, que, forçada e a contragosto, moveu-se. E nossa escuta desse silêncio enfim rompido se deve à voz dos filhos, ou melhor, das filhas dos retornados. É o que podemos compreender ao ouvir as seguintes palavras de Isabela Figueiredo sobre seu romance: “Perdoem esta falta de modéstia congénita, que cai sempre tão mal, mas jurei não dizer o que não penso: ganhei a notoriedade de uma voz. Tornei-me uma voz” (FIGUEIREDO, 2010 [“Parabéns, querido Caderno”. Postagem em 18.nov.2010. Disponível em http://novomundoperfeito.blogspot.com.br/2010/11/parabens- querido-caderno.html. Último acesso em 14.fev.2016]), o que revela, acima de tudo, que o rito de passagem vivido pelos personagens de um e outro romance, pari passu com as dores e transformações da experiência do retorno, acaba por configurar um processo profundamente empoderador, de transformação do silêncio cúmplice em voz que transcende a esfera da vida privada e invade a cena pública, constituindo um relato-testemunho, um discurso de denúncia, e um sujeito que os enuncia.
»Na conclusão deste artigo, é a voz desses narradores que ecoam e dominam. Revendo toda a experiência vivida no hotel do Estoril, no dia em que dali estão partindo, o personagem Rui está sozinho no terraço e olha para o céu (e não mais para o mar). O mar ficou além, no passado, no mesmo lugar onde ficou a infância e a África perdidas (“A que casa regressarás? Quanto tempo permanecerás sobre a cova onde o teu passado apodrece?”, pergunta-se a narradora ao concluir os seus Cadernos) (FIGUEIREDO, 2011, p. 136 [“Das castas entre os retornados”. Postagem em 9.ago.2011. Disponível em http://novomundoperfeito.blogspot.com.br/2011_08_01_ archive.html. Acesso em 14.fev.2016]).
»O mar agora distante, o céu por sobre sua cabeça, Rui parece se despedir do passado, e começa a empreender uma outra viagem: para dentro desta terra, que o acolhe mal e onde será sempre um retornado (“Em Portugal habituei-me cedo a ser alvo de troça ou de ridículo, por ser retornada ou por me vestir de vermelho ou lilás”, diz Isabela nos Cadernos) (FIGUEIREDO, 2011, p. 119 [cit.]), mas que, ainda assim, é a terra possível, o único caminho, a realidade.
»Na cena do terraço, Rui vê cruzar um avião e lhe passa pela mente a ideia de escrever algumas palavras no chão, ali mesmo. Sua decisão é incerta como incertos se tornaram todos os momentos, agora que sua iniciação se cumpriu e o provisório e o precário entraram de vez em sua vida.
»Talvez escreva, talvez não. E se escrever, os que sobrevoarem o hotel verão lá do alto, inscritas no chão, as palavras que resumem sua sofrida, definitiva e transformadora experiência: “Eu estive aqui”. (CARDOSO, 2012, p. 267 [O retorno. Rio de Janeiro: Tinta da China]), como a testemunhar o que viveram todos aqueles, como ele, filhos de retornados, experiência indelevelmente marcada em cada um. “O meu corpo foi uma guerra, era uma guerra, comprou todas as guerras” (FIGUEIREDO, 2011, p.127 [cit.]), Isabela disse. E sabia do que falava.
»NOTAS
»2 Raquel Ribeiro cita, em seu artigo “Os retornados estão a abrir o baú” (2010), outra passagem esclarecedora de Eduardo Lourenço: “Mesmo na hora solar da nossa afirmação histórica, essa grandeza era, concretamente, uma ficção. Nós éramos grandes [...], mas éramos grandes longe, fora de nós, no Oriente de sonho ou num Ocidente impensado ainda.” (LOURENÇO apud RIBEIRO, 2010 [“Os retornados estão a abrir o baú”. Publicado em 19 ago.2010. Disponível em http://www.buala.org/pt/a-ler/os-retornados- -estao-a-abrir-o-bau. Acesso em 14.fev.2016.])
»3 Entre os escritores que abordaram diretamente o tema do retorno, nome incontornável é o de António Lobo Antunes, que principalmente em dois de seus romances, As nause O esplendor de Portugal, tratou de forma contundente as dificuldades vividas pelos retornados em Portugal. Acrescento também os romances Partes de África e Pedro e Paula, ambos de Helder Macedo, e O Tibete de África, de Margarida Paredes, que encenam os dramas dos retornados, ainda que não de forma central em suas narrativas.
»4 Segundo Ribeiro, esses livros, juntamente com outros que os precederam, “representam a significativa parte da comunidade portuguesa que se imagina a partir de um discurso ‘pós-luso-tropical’ e que assim se subtrai a uma reflexão sobre a violência política, social e epistémica que foi o colonialismo”. (RIBEIRO, 2012, p. 92 [cit])
»5 Segundo Sheila Khan, o livro de Isabela Figueiredo foi uma ‘pedrada no charco’. “A maneira como ela entra no texto, ninguém quer ouvir aquilo. Tínhamos uma ideia muito pacífica e paradisíaca do colonialismo português em África”. (KHAN apud RIBEIRO, 2010 [cit]).
»6 No artigo intitulado “Os retornados estão a abrir o baú”, Raquel Ribeiro acrescenta ainda outros nomes à lista de autores que, numa perspectiva crítica e pós-colonial, abordam o tema do retorno em sua produção recente. António Mateus (Lobito, 2009; Lubango, Paris, Mavinga, 2010) e Manuel Acácio (A balada do Ultramar, 2009) são exemplos dessa abordagem.
»7 Cf. VIEGAS,2010: “Isabela Figueiredo providencia socos no estômago, às vezes desnecessários, mas pressente-se a sua urgência, aquela espécie de queda para o abismo que leva a mexer em todas as feridas, as pessoais e as da rua, as da multidão de retornados que chegaram à Metrópole e começaram a viver perto da linha que delimita o nada e o tudo”.
»8 Cf. KHAN, Sheila apud RIBEIRO, 2010 [cit.].
»9 Entrevista a Margarida Cardoso. Disponível em http://www.ulusofona.pt/lessons/margarida- cardoso. Acesso em 14 fev. 2016.»