agosto 25, 2015

«Duas tendências nos estudos em referenciação»



Valdinar Custódio Filho
«Reflexões sobre a recategorização referencial sem menção anafórica»

Linguagem em (Dis)curso, vol. 12, n.º 3, set./dez. 2012

Linguagem em (Dis)curso | Universidade do Sul de Santa Catarina | Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem | Tubarão | Santa Catarina | BRASIL




«Duas tendências nos estudos em referenciação

»A fim de compreender em que panorama teórico se encontra o alargamento do fenômeno da recategorização conforme propomos neste trabalho, julgamos relevante, inicialmente, defender a ideia de que, no atual estágio das pesquisas em referenciação, os estudos podem ser vinculados a duas tendências. Advertimos, de antemão, que, longe de serem antagônicas, essas tendências são complementares, principalmente porque abraçam os mesmos pressupostos. O que muda é o foco de análise (e a consequente ampliação da noção de texto/discurso), no que diz respeito à participação e integração dos elementos linguísticos e não linguísticos na construção da referência.



»A primeira tendência

»A primeira tendência, seguida pela maioria dos estudos em referenciação [NOTA 1], tem como questão central a seguinte: de que maneira os usos referenciais (= expressões referenciais) elucidam/confirmam os postulados assumidos pela referenciação? Em linhas gerais, pode-se dizer que essa tendência parte das expressões referenciais acionadas em um texto para refletir sobre a natureza sociocognitivo-discursiva do fenômeno. Em virtude de uma saliência do caráter dinâmico atinente à construção dos objetos de discurso, foram abertas novas possibilidades investigativas, o que justificou a adoção da terminologia 'referenciação', em oposição a 'referência'. Há, nessa perspectiva, uma preocupação intensa com vistas ao entendimento do caráter “funcional” das expressões referenciais. Dessa forma, o referente deixa de ser apenas um objeto identificado no texto para ser um objeto que, podendo exercer várias funções (CIULLA; SILVA, 2008), é essencial para a configuração dos sentidos. Ganham destaque nesse quadro, por exemplo, as reflexões sobre o caráter argumentativo das expressões referenciais, como se vê em Koch (2005, entre outros) e Zavam (2007).

»Os trabalhos associados à primeira tendência podem ser de dois tipos:

»• estudos que propõem um quadro geral das estratégias referenciais, como os de Koch e Marcuschi (1998), Marcuschi (2000), Koch (2003) e Cavalcante (2003, 2004). Esses trabalhos têm, entre outros propósitos, o de mostrar propostas classificatórias das estratégias referenciais, para orientar as análises textuais;

»• estudos que tratam de uma estratégia de referenciação específica, por exemplo, o encapsulamento (ou rótulo) [NOTA 2], a dêixis [NOTA 3], a anáfora recategorizadora [NOTA 4] e a anáfora indireta [NOTA 5]. Dentre as estratégias citadas, destacamos a recategorização anafórica e a anáfora indireta, sobre as quais apresentamos uma breve explicação.


»A recategorização anafórica ocorre quando uma anáfora opera uma transformação no referente que vinha sendo construído até então. Vejamos um exemplo.

»(1) Aconteceu em Minas: uma mulher traída cortou o cabelo da amiga... Pois é, foi assim mesmo. Uma descobriu que a outra tava saindo com o marido da uma. Complicado? Na verdade não... se fosse só a clássica história de traição não teria nada demais. Mas a mulher traída era uma pessoa que queria (e sabia como) se vingar. Sabendo que o ponto fraco feminino são as melenas, não contou tempo: cortou tudo! Isso mesmo, fez com que a “amiga” fosse pra casa careca. As mulheres sabem como se vingar... Mas a história não acaba aqui. A careca entrou na justiça e processou a “cabeleireira louca” em 4 mil e 800 reais. Sim, e mais 600 reais pela peruca... Pois é... coisas do universo feminino. [NOTA 6]


»Em (1), um mesmo objeto de discurso, estabelecido pelas expressões sublinhadas, apresenta-se sob formas diferentes, o que configura um processo de recategorização lexical. Com o desenrolar da leitura, vão se acrescentando especificidades ao referente: além de uma mulher traída, somos informados de que ela era “uma pessoa que queria (e sabia como) se vingar”, o que a levou a ser considerada uma “cabeleireira louca” (essa última expressão tem a função de apresentar a posição do enunciador a respeito desse referente). Vê-se, assim, que um mesmo objeto de discurso recebe diferentes formas referenciais, que modificam (recategorizam) seu status ao longo do texto.

»Uma análise nesses moldes, portanto, pode tratar, entre outras coisas, da maneira como as expressões estabelecem a progressão referencial ou da forma como se depreende o projeto argumentativo de um enunciador a partir de suas escolhas referenciais. Poder-se-ia, ainda, avaliar os elementos pragmáticos e/ou discursivos que interferem na escolha dos determinantes (artigo definido, artigo indefinido ou pronome demonstrativo) das expressões referenciais.

»Nos estudos iniciais sobre a recategorização (erigidos em torno do trabalho inaugural de Apothéloz e Reichler-Béguelin, 1995), considerava-se que esse fenômeno estaria circunscrito aos casos de correferencialidade (anáfora direta), ou seja, aos casos de manutenção de um referente previamente apresentado. Contudo, os desdobramentos das investigações levaram ao entendimento de que a recategorização anafórica pode ocorrer em casos de encapsulamento e de anáfora indireta (ver, por exemplo, TAVARES (2003) e LIMA (2007)). As contribuições tendem a considerar a recategorização como um processo mais amplo, passível de acontecer em qualquer estratégia anafórica.

»A anáfora indireta talvez seja, das estratégias referenciais, a que mais se desenvolveu, em termos de explicações mais aprofundadas, a partir da proposta teórica da referenciação. Consiste na apresentação de um novo referente como se este já fosse conhecido. Isso decorre do fato de o contexto estabelecido até um determinado momento permitir uma gama de referentes potencialmente ativáveis, os quais, quando aparecem, já são esperados. É o que pode ser observado no exemplo a seguir, encontrado em Marcuschi (2005).

»(2) Nos últimos dias de agosto... a menina Rita Seidel acorda num minúsculo quarto de hospital... A enfermeira chega até a cama...


»Marcuschi comenta que a expressão “A enfermeira” não é correferencial a uma expressão anterior; entretanto, é apresentada como conhecida porque se trata de um elemento passível de ativação pelo esquema cognitivo que se instala com o item “quarto de hospital”. Segundo o autor, não se trata, nesse caso, de uma anáfora ancorada em relações semânticas estritas, como são as relações meronímicas (relações parte/todo) ou outras relações semânticas “inscritas nos SNs definidos” (MARCUSCHI, 2005, p. 62), possibilidades contempladas pelas propostas limitadas a relações mais restritas. Trata-se de uma interpretação que demanda o conhecimento de esquemas cognitivos construídos socialmente. Os trabalhos sobre anáfora indireta têm como objetivo principal, portanto, esclarecer os aspectos contextuais (incluindo-se o aparato cognitivo) que interferem na elaboração e no processamento dessas ocorrências.

»A partir do exposto, podemos dizer que a referenciação é uma proposta teórica que fortalece o “poder” da anáfora. Essa categoria não pode mais ser entendida nos limitados moldes da relação de identificação entre sintagmas presentes num texto. Ela é, na verdade, a unidade poderosa que revela um complexo trabalho sociocognitivo-discursivo de abordagem da realidade, passível de retomar elementos os mais diversos e de realizar múltiplas funções. Há, portanto, diversas (frutíferas) possibilidades de análise dentro dessa perspectiva. Assinalamos, contudo, que todas essas possibilidades são centralizadas na análise de expressões referenciais. Uma teoria que reforça o poder da anáfora (ou, mais precisamente, da menção anafórica) é, também, uma teoria da onipresença do sintagma nominal. Não se concebe, nesse panorama, que a construção dos referentes possa se estabelecer por estruturas e mecanismos não diretamente relacionados à menção referencial. Essa limitação, entre outras, tem estimulado avanços que fazem emergir o que denominamos segunda tendência dos estudos em referenciação.



»A segunda tendência

»A abordagem que caracteriza a segunda tendência parte do seguinte questionamento: de que maneira os vários elementos que participam da configuração textual (materialidade verbal e não verbal, aparato cognitivo, aspectos sócio-históricos e circunstanciais) são acionados para a construção de referentes? Além de entender como as relações entre as expressões referenciais podem ser tratadas sob o viés sociocognitivo-discursivo, importa saber como os referentes, construtos fundamentais para a produção dos sentidos, são elaborados, levando-se em conta que tal construção é passível de ocorrer dentro de uma dinâmica muito mais ampla, que não se limita, exclusivamente, ao universo das expressões referenciais.

»Para nós, a segunda tendência marca, pertinentemente, outro movimento de investigação. Não se trata de buscar nos textos a confirmação dos postulados. Em vez de buscar exemplos (= expressões referenciais) que confirmem a teoria, parte-se dos usos, assumindo-se uma complexidade que não pode ser restrita ao papel dos sintagmas nominais, para ver como uma proposta de integração entre múltiplos fatores pode explicá-los; simultaneamente, admite-se que a própria análise pode mudar a proposta, tornando-a mais forte no que diz respeito a sua capacidade de explicação.

»As diferenças já começam a ser notadas e vêm passando por descrições coerentes. Em torno das mudanças, está a convicção de que os postulados assumidos pelos que abraçam o paradigma sociocognitivista, os quais orientam uma concepção de texto como construto multifacetado, exigem compromissos dos pesquisadores, no que tange a uma investigação que privilegie, sempre e cada vez mais, a interação. É esse o espírito que anima as pesquisas da segunda tendência, as quais chegaram a alguns achados bastante instigantes, tais como:

»• a consideração de que a recategorização é resultante da conjunção de várias porções cotextuais, e não apenas da “ligação” entre expressões referenciais (LEITE, 2007a, 2007b);

»• a possibilidade de uma expressão referencial retomar um objeto de discurso presente em outro cotexto, o que fala em favor de uma anáfora intertextual (COSTA, 2007);

»• a constatação de que elementos multimodais também promovem a construção dos referentes (MONDADA, 2005; CUSTÓDIO FILHO, 2009, 2011);

»• a verificação de que a construção de referentes pode se dar sem a menção referencial.


»É sobre este último tópico que desenvolvemos nossa discussão a partir daqui. Vemos, nessa ideia, uma grande contribuição que começa a ganhar corpo: trata-se de uma reorientação quanto à necessidade intrínseca de a referência ser manifestada, textual e discursivamente, apenas por expressões referenciais. A posição que vamos assumir, a partir de Cavalcante (2011), é contrária a essa, de modo que entendemos a atividade referencial como passível de ocorrer sem que haja um sintagma nominal específico para tal.

»Tal possibilidade só passa a ser considerada quando se assumem, ou melhor, quando se levam em conta, nas análises, as consequências do princípio de que a construção do sentido é resultado da integração de múltiplos fatores (linguísticos e extralinguísticos). Na tendência majoritária, esse princípio é também considerado, mas ele (quando efetivamente aparece nas análises, o que nem sempre acontece) está sempre a serviço da elucidação da relação entre expressões referenciais. O que se está defendendo aqui é que a integração de múltiplos fatores indica possibilidades de estudo ainda não investigadas, mas que, se pararmos para pensar, podem ser consideradas como desdobramentos “naturalmente” esperados em relação ao que se vinha pesquisando.

»A título de ilustração, vejamos o exemplo a seguir, comentado por Cavalcante (2011).

»(3) — Antes de começarmos, por favor, me diga uma coisa, o que o senhor fazia no emprego anterior?

»— Eu era funcionário público!

»— OK! O senhor pode contar até dez?

»— É claro! Dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, valete, dama, rei e ás. 50 piadas, de Donald Buchweitz.


»A autora nos diz que, em (3), o referente “entrevista de emprego” (cuja depreensão é essencial para que se perceba o humor do texto) é construído sem que haja uma menção a ele. Contudo, vários elementos denunciam a sua “presença”:

»A fórmula de início da entrevista, “Antes de começarmos”; a alusão a um emprego anterior; a dêixis social [“o senhor”], indicando a forma de tratamento respeitosa, tudo isso se conjuga ao conhecimento comum que se adquiriu do ritual comunicativo de uma entrevista de emprego e favorece a instauração da referência (CAVALCANTE, 2011, p. 120-121).


»A reflexão de Cavalcante, portanto, contempla uma ideia bastante cara ao que estamos chamando aqui de segunda tendência dos estudos em referenciação: as estratégias referenciais são mais complexas que o universo das expressões nominais. Segundo a autora (p. 122).

»O referente, ou objeto de discurso, é uma entidade que emerge da própria interação e nem sempre se explicita por uma expressão referencial, quer se introduzindo no discurso, quer apenas se mantendo nele sem muitas alterações, ou quer se mantendo, mas se recategorizando.


»A aceitação dessa tese não significa desconsiderar as contribuições anteriores. Como bem esclarece a pesquisadora (2011, p. 122).

»Não estamos negando, com esse pensamento, que, por outro lado, existam mecanismos de estabilização da referência, nem que o uso de uma expressão de introdução referencial ou de uma anáfora correferencial deva ser subvalorizado na reconstrução da coerência de um texto. Pelo contrário: sabemos que, no momento em que um referente é denominado por uma expressão referencial, sua lexicalização já contribui para estabelecer uma categoria em que ele foi enquadrado pelo enunciador (ver KOCH, 2002a), e este será sempre um fabuloso recurso utilizado pelo falante para orientar o interlocutor quanto ao modo como se espera que ele desenhe o quadro referencial, a partir dos pontos de vista conduzidos no texto.


»O comentário de Cavalcante salienta a não oposição entre as duas tendências. Como já dissemos, as duas propostas não precisam, necessariamente, se digladiar. As novas considerações não apagam ou desconsideram as estratégias referenciais mais “tradicionais”, haja vista elas também se efetivarem a partir dos mesmos pressupostos. Entendemos que as novas reflexões, na verdade, só vêm fortalecer o paradigma pragmáticocognitivo- discursivo sobre a linguagem. Assumi-lo implica estar disposto a promover análises e reflexões que os levem efetivamente a cabo.

»Esse desdobramento salienta a vocação da proposta da referenciação para respaldar e/ou fazer avançar os conceitos de sociocognição e de texto assumidos na atualidade. Levando-se em conta o panorama científico mais amplo, o quadro que aqui delineamos acerca dos avanços da referenciação confirma a ideia de que a Linguística está sempre disposta a encontrar explicações mais completas para sua teorização sobre os processos de significação. A fim de contribuir para tal empreitada, acrescentamos, à ideia da construção referencial sem menção, a consideração de que as recategorizações também podem ocorrer sem que seja necessário explicitá-las por meio de sintagmas nominais. É isso que discutimos na próxima seção. [...]




»Considerações finais

»Animados pela convicção de que o olhar sociocognitivo sobre os fenômenos textual-discursivos imprime algumas exigências investigativas, intentamos mostrar que os estudos da segunda tendência podem propor explicações que deem conta, com mais propriedade, da complexidade do fenômeno da referenciação. Neste trabalho, indicamos tal complexidade a partir de uma reflexão sobre a possibilidade de ocorrer a recategorização referencial sem o uso de uma expressão nominal específica para tal fim. Com isso, mostramos que as relações estabelecidas nos textos, com vistas à produção de sentidos, podem ocorrer por meio de estratégias diversas. Consideramos que o movimento percebido em torno da segunda tendência pode ser considerado como um desdobramento esperado das investigações na área. Uma vez que referir é, também, dar sentido, fatalmente teríamos de ser levados a reconhecer que a constituição do sentido envolve “muitas coisas”. Essas muitas coisas entraram indubitavelmente na agenda dos estudos sobre referenciação e, embora não exclusivamente, já dão a tônica de como serão as investigações futuras.

»A partir daqui, já sabemos que a recategorização ocorre em diferentes situações. Para além disso, vislumbramos um quadro investigativo que saliente a natureza múltipla dos “aspectos” a serem recategorizados. Resta, portanto, descrever o “resultado” de tais recategorizações, ou seja, analisar e discutir os diferentes tipos de traços recategorizadores que podem ser atribuídos aos referentes. As perspectivas que se abrem atestam o caráter dinâmico do processo da referenciação e confirmam a posição fulcral que esse fenômeno ocupa nos estudos atuais da Linguística Textual. Tratemos, pois, de trilhar esse produtivo caminho teórico.




Notas

»[NOTA 1] Encontram-se exemplos de pesquisas dessa natureza na obra organizada por Koch, Morato e Bentes (2005) e na organizada por Cavalcante et al. (2007).

»[NOTA 2] Francis (2003) e Conte (2003).

»[NOTA 3] Cavalcante (2000) e Ciulla e Silva (2002).

»[NOTA 4] Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995), Apothéloz e Chanet (2003), Tavares (2003), Matos (2005) e Lima (2007).

»[NOTA 5] Apothéloz e Reichler-Béguelin (1999), Melo (2001), Gary-Prieur e Noailly (2003) e Marcuschi (2005).

»[NOTA 6] Disponível em http://www.psicologoneurotico.blogger.com.br/2004_07_01_archive.html. Acesso em 19 ago. 2008.




Referências

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