Rafael Straforini
«Práticas pedagógicas e curriculares de Geografia nos anos iniciais ensino do ensino fundamental no Brasil: alienação ou resistência?»
AA.VV., La investigación e innovación en la enseñanza de la Geografía. Congreso Ibérico de Didáctica de la Geografía (7. 2015. Alicante)
coord. por Rafael Sebastiá-Alcaraz y Emilia-María Tonda-Monllor
San Vicente del Raspeig (Alicante), Universidad de Alicante, 2016
Extracto de páginas 846-847 y 855-856 del artículo en PDF
«A ALTERIDADE COMO CATEGORIA PROBLEMATIZADORA
»Reconhecemos que a quase totalidade dos pesquisadores da Geografia Escolar no Brasil é formada por profissionais licenciados nessa área de conhecimento, logo, refletir sobre a Geografia Escolar nos anos iniciais do ensino fundamental a partir desse “espaçotempo” que ocupamos (universidade) é um desafio enorme porque precisamos nos colocar no lugar do outro, no entanto, sem abandonar todo sistema de representação que construímos a partir dos saberes e da cultura deste “espaçotempo” que ocupamos.
»Acreditamos que nas pesquisas que tenham por objetivo compreender as práticas curriculares e cotidianas dos professores dos anos iniciais do ensino fundamental, principalmente no que diz respeito aos conteúdos e saberes que nós geógrafos chamamos de conteúdos geográficos, é premente que nos coloquemos no lugar desse ser outro – os professores dos anos iniciais. Nesse sentido, a alteridade emerge como categoria fundante, tendo em vista que etimologicamente significa colocar-se ou constituir-se no lugar do/como o outro numa relação interpessoal. Segundo, Bezerra e Rosito (2011, 171):
»A prática da alteridade está conectada aos relacionamentos entre indivíduos e grupos culturais, religiosos, científicos, étnicos, etc. Na relação entre os sujeitos, estão presentes aspectos holísticos da complementaridade e da interdependência, no modo de pensar, de sentir e de agir, onde o nicho ecológico e as experiências particulares são preservados e considerados, sem que haja a preocupação com a sobreposição, assimilação ou destruição dessas.
»Chaluh (2008, 40), em sua tese de doutorado intitulada “Formação e alteridade: pesquisa na e com a escola” se apropria de Bakhtin para afirmar que
»só no momento em que percebi e em que senti que nos constituímos na relação com os outros, é que vi a importância da alteridade como fundamento de todo o desenvolvimento da minha pesquisa. Foi a partir da alteridade, do encontro com o outro, que a minha pesquisa começou a ter sentido para mim como pesquisadora. Assim, o serestar pesquisadora na escola implicou uma outra busca: quais os sentidos da presença de um pesquisador na escola? Quais os sentidos que teve para mim ser pesquisadora na escola? Quais os sentidos que teve para os outros a presença de uma pesquisadora na escola?
»Nos apropriamos das perguntas e inquietações da autora acima, e também da a constatação de Kensky (2001) sobre o papel da memória na prática docente, para se fazermos as seguintes problematizações: O que nós geógrafos (licenciados e/ou bacharéis) conhecemos da geografia escolar dos anos iniciais para além daquilo que guardamos na memória a partir de nossas experiências de infância? É possível ressignificarmos nossos discursos sobre a Geografia Escolar dos anos iniciais a partir desse contato com o outro? Como o outro (os anos iniciais do ensino fundamental) pode nos levar ao reencontro conosco mesmo, isto é, de nossas próprias geografias?
»Metodologicamente, alteridade se evidencia a partir da condição de estranhamento, ou seja, para que se possa compreender o outro, é “necessário que se me apresentar como estranho – e o caminho para isso não é a empatia nem a identificação com ele. A alteridade existe, o outro existe porque existe um lugar exterior, uma dissimetria, condições que me vão permitir compreender o outro” (Chaluh: 2008, 45).
»Partimos do princípio que nas pesquisas dos anos iniciais baseadas na alteridade faz-se necessário que não nos limitemos ao estranhamento do que encontramos no cotidiano escolar desse nível de escolaridade a do nosso campo disciplinar e profissional (professores de geografia), mas num estranhamento que nos liberte de nosso olhar demasiadamente abstrato para com esse nível de escolaridade, fruto da distância de nosso processo de formação e também de nossas práticas enquanto professores e de pesquisadores.
»É preciso que tenhamos consciência de que passamos por uma formação disciplinar, o que resulta numa prática pedagógica, e numa forma de ver o mundo unidisciplinar. Logo, pensamos e agimos sob a ótica da Geografia ou, quando muito, respondemos a um exercício interdisciplinar via categorias e conceitos unicamente geográficos. Em contrapartida, os professores dos anos iniciais não passam por um processo de formação inicial centrado numa única área de conhecimento contemplada dentre as disciplinas escolares, e suas práticas caracterizam-se pela pluridisciplinaridade.
»Vale também ressaltar que a cultura escolar a partir do segundo segmento do ensino fundamental (6º ao 9º ano) é deveras diferente do primeiro segmento (1ºao 5º ano), a exemplo da interdisciplinaridade imputada pela polivalência, do arranjo do mobiliário das salas de aula, da decoração do pátio, do cardápio da merenda escolar, da rotina interna de horários, da relação professor-aluno-pais, da institucionalidade escolar, da relação professor-professor na sala dos professores, entre inúmeros outros pontos (Philipot: 2013).
»Para o ensino de geografia nos anos iniciais o estranhamento é ainda mais marcante, pois a Geografia que se produz nas universidades e o processo de formação do professor de geografia não estão voltados e nem preocupados com as especificidades desse nível de escolarização (Straforini: 2012a). Esse é, então, o desafio que nos é apresentado enquanto pesquisadores dos anos iniciais: partir da condição de estranhamento, mas, ao mesmo tempo, abandonar o olhar demasiadamente abstrato ou práticas cotidianas muito díspares (Azanha: 1992) sobre esse segmento de ensino e, ao mesmo tempo, mergulhar na concretude do cotidiano de seus sujeitos praticantes, em busca dos elementos que possam servir como ferramentas para uma reflexão que realmente aproxime esses universos díspares, ou seja, a alteridade como um condicionante para a superação secular da dicotomia entre a geografia escolar dos anos iniciais e da geografia escolar dos demais níveis.
»[…]
»CONSIDERAÇÕES FINAIS
»Acreditamos que o discurso de mudança presente nos documentos curriculares de geografia não pode ser desvinculado das políticas curriculares maiores, pois, na condição de um discurso oficial, tenta imputar no imaginário coletivo que as mudanças tão almejadas no sistema educacional limitam-se exclusivamente às mudanças curriculares, reduzindo o debate da política e de um projeto de nação ao campo do indivíduo, pois uma vez que a melhora do sistema educacional não se vislumbra na prática, é muito direta a culpabilização daqueles que não seguem o receituário curricular: os professores e as unidades escolares. Por outro lado, os documentos também revelam as disputas que se dão no contexto de sua produção, sobretudo disputas por hegemonias discursivas.
»Ora, a questão é que a comunidade epistêmica que produz os documentos não leciona e nem tem a habilitação para lecionar nos anos iniciais, desconhecendo que trata-se de uma cultura escolar muito específica e diferenciada daquela vivenciada no segundo segmento dos ensinos fundamental e médio. Como nos ensina Goodson (1997), trata-se de uma dessincronização entre os discursos organizacionais (a vida escolar e as ações dos professores e alunos) e os discursos institucionais (os aspectos externos à escola, os níveis de ensino e os tópicos curriculares), garantindo, assim, mais permanências do que mudanças.
»A alteridade constituinte das práticas pedagógicas e dos documentos curriculares nesse nível de escolaridade revelou-nos que há uma ambiguidade considerando os contextos de produção e da prática desses documentos. Não estamos aqui defendendo que os geógrafos não possam escrever, pensar, refletir e produzir os textos curriculares para esse nível de escolarização, mas ao não se considerar a alteridade do seu fazer pedagógico há grandes chances de tais textos expressarem muito mais os embates por hegemonias discursivas no campo da própria ciência geográfica do que produzir algum sentido aos professores que atuam diretamente com os alunos do 1º ao 5º ano do ensino fundamental.
»Identificamos também que os documentos carregam muito mais lógicas de equivalência do que de diferença, e com isso a existência de mais permanências do que de mudanças curriculares. Dentre as equivalências, apresentamos aqui algumas que se inscrevem na tradição pedagógica do ensino de conteúdos de geografia às crianças. É assim que em todos os textos analisados, as categorias geográficas lugar e paisagem se unem às categorias pedagógicas realidade, vivido e real-concreto, fazendo com que essa equivalência se torne um discurso hegemônico.
»No entanto, não se trata de um único discurso que atravessa todo o período estudado (década de 1980 a década de 2010), pois tais categorias e conceitos apresentam sentidos muito divergentes a depender de quem os diz, de onde e como se diz, isto é, a que corrente epistemológica da Geografia ou escola geográfica que os sujeitos que produziram tais textos pertencem, ou seja, do contexto de produção do documento. No entanto, eles permanecem nos documentos pelo jogo de negociações e as disputas não dizem respeito ao seu sentido pedagógico, mas sim ao sentido geográfico hegemônico que a eles se quer atribuir, logo, a contingencialidade reside nesse campo de disputas e elas ocorrem efetivamente no contexto da produção dos documentos, já que os professores dos anos iniciais por não pertencerem a esse grupo epistêmico, estão sempre mais preocupados com o contexto da prática.
»A constelação de textos curriculares relacionados ao ensino de geografia que circula na escola revela discursos hegemônicos fixados provisoriamente em torno de sentidos sempre negociados (cadeia de equivalências) daquilo que deve permanecer e mudar a partir das tradições utilitária, pedagógicas e acadêmicas (Goodson: 1990) da própria disciplina escolar (Geografia), revelando o caráter contingencial e precário desses discursos.
»Os professores que atuam nos anos iniciais também nos revelaram nas entrevistas realizadas que não incorporam na totalidade os discursos curriculares referentes às metodologias de ensino que lhe são apresentados como sendo os mais atualizados, inovadores e contemporâneos às discussões acadêmicas e pedagógicas, mas hibridizam um conjunto de discursos curriculares que flutuam no contexto escolar a partir da tradição pedagógica do que se definiu como sendo conteúdos de geografia, “exercícios tipo” (Rodriguez Lestegás: 2002) e da cultura escolar dos anos iniciais marcada, sobretudo, pela polivalência, pelo currículo integrado e por uma rotina escolar em que o processo de letramento e desenvolvimento do pensamento lógico matemático sempre foram primaz nas práticas curriculares (Philippot: 2013).
»Não se trata, assim, de alienação dos professores frente aos documentos curriculares, mas de uma resistência ou subversão que, mesmo que inconsciente, anuncia a necessidade de implementação de políticas educacionais e curriculares que os coloquem como protagonistas do processo e não meros reprodutores, condição esta que nunca existiu na sua plenitude.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
»Azanha, J. M. P., 1992. Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Edusp.
»Bezerra, A. A. C.; Rosito, M. M. B., 2011. “Formação de profissionais que atuam em escolas de educação básica localizadas no semiárido brasileiro: uma contribuição aos estudos da alteridade nas políticas públicas”. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, v. 19, núm. 70, jan./mar. pp.165-190
»Chaluh, L. N., 2008. Formação e alteridade: pesquisa na e com a escola. Tese (doutorado em Educação). Campinas: Faculdade de Educação/UNICAMP.
»Goodson, I., 1990. “Tornando-se uma Matéria Acadêmica: Padrões de Explicação e Evolução.”Teoria e Educação, Porto Alegre, núm. 2, pp. 230-254.
»Goodson, I., 1997. A construção social do currículo. Lisboa: Educa.
»Kensky, V. M., 2001. “A vivência escolar dos estagiários e a prática de pesquisa em estágios supervisionados”. Piconez, S. C. B. (coord.). A Prática de Ensino e o Estágio Supervisionado. Campinas: Papirus.
»Philippot, T., 2013. “Professores de Escolas Primárias na França e ensino de geografia: saberes escolares disciplinares e práticas de ensino.” Pro-Posições, Campinas, v.24, núm 1 (70), jan./abr., pp. 79-92.
»Rodríguez, F., 2002.“Concebir la geografia escolar desde una nueva perspectiva: una disciplina al servicio de la cultura escolar”. Boletin de la Asociación de Geógrafos Españoles. Madrid. núm. 33, pp. 173-186.
»Straforini, R., 2012a. “Alteridade e Geografia Escolar: uma leitura das práticas curriculares nos primeiros anos do ensino fundamental”. Revista de Geografía Espacios. Santiago/Chile. v.2, núm. 3, jul., pp. 57-72.»
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