Rafael Reis Luz
«“Trezentas mil implicações”: possibilidades familiares em uma pesquisa sobre conjugalidade»
Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis, vol. 14, n.º 1 (2017)
Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis | Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) | Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) | Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) | Florianópolis | Santa Catarina | BRASIL
Extracto de páginas 152, 153-154 y 169-170 de la publicación en PDF. Véanse las referencias en la publicación original del texto.
«RESUMO
»Este artigo consiste em um desenvolvimento de pesquisa realizada em 2014, na qual investiguei a experiência da conjugalidade homossexual a partir de entrevistas com quatro casais, tendo como referenciais teóricos a Análise de Discurso francesa e os estudos queer. No presente texto, parto de contribuições sobre parentesco de Marilyn Strathern (2005;2015), especialmente suas discussões sobre parentalidade e demais relações familiares, para apresentar as narrativas de um dos casais de mulheres entrevistadas e pensar os (des)encontros entre certa ordem familiar instituída e novos arranjos familiares.
»Dentre as muitas expectativas, planos e dilemas, observamos que, no tocante à geração de filhos, são temidos os questionamentos da família de origem quanto à identificação e inclusão do genitor na rede familiar, à orientação sexual das mães etc. O discurso do casal aponta para uma complexa trama que envolve variadas possibilidades de arranjos parentais e familiares, sexualidades e afetos.
»Não obstante, o casal de mulheres entrevistadas parece operar sob uma reiteração subversiva: as possibilidades são discutidas e negociadas tendo a família de origem como referência legitimadora, como instituição que se autoriza a indagar seus vínculos, afetos e desejos. Nesse sentido, o casal analisado apropria-se de determinadas referências familiares porque estas dizem respeito às histórias individuais, ao mesmo tempo em que as negociam, reformulam-nas, submetem-nas às reavaliações que fazem em seu projeto de uma vida a dois ‘alternativa’.
»Palavras-chave: Conjugalidade. Parentalidade. Reprodução Assistida. Família. Homossexualidade.
»INTRODUÇÃO
»O presente texto é baseado em uma pesquisa já realizada, que teve como objetivo investigar a experiência da conjugalidade homossexual. Partindo da postulação de Butler (1990/2012) a respeito da matriz de gênero, um arranjo social e cultural inteligível entre gênero, sexo e práticas sexuais, das performatividades de gênero enquanto meios de reiteração e subversão dessa matriz (BUTLER, 1990/2012, 2009, 1993/2002; 1998) e da heteronormatividade (conceito elaborado inicialmente por WARNER, 1991) enquanto uma entre as muitas possibilidades desse arranjo, levantei, na referida pesquisa, a seguinte questão norteadora: quais seriam as possibilidades de aceitação, manutenção e/ou rejeição desse arranjo heteronormativo nas relações afetivo-sexuais, especificamente entre gays e lésbicas?
»Foi realizado inicialmente um levantamento da produção acadêmica sobre a conjugalidade homossexual nos últimos anos, cuja análise, em paralelo com o histórico das homossexualidades, apontou para uma aproximação entre discussões sobre conjugalidade e casamento gay e lésbico, além de uma possível ‘heterossexualização’ das relações homossexuais (LUZ, 2015). A pesquisa de campo, de caráter exploratório, consistiu na realização de entrevistas semiestruturadas com dois casais de homens e dois de mulheres e a análise do material adotou como referência a metodologia da Análise do Discurso de vertente francesa (PÊCHEUX, 2012, 2009; FERNANDES, 2008).
»As conjugalidades investigadas se constituíam por meio de uma temporalidade social, de uma frequência de ações, atos e discursos que, se a princípio descontínuos, terminam por sedimentar a passagem de uma vida do eu para uma vida do nós. Entendidas como um espaço de construção de uma estética conjugal que elenca a liberdade como um de seus aspectos centrais, estas relações conjugais produziam discursos que abarcavam possibilidades de existência conjugal variadas (LUZ, 2015).
»No presente texto, o empreendimento é outro: trata-se de destacar algumas contribuições teóricas recentes para analisar, à luz do parentesco, as narrativas e discussões sobre parentalidade4 de um dos casais de mulheres entrevistadas, e pensar os (des)encontros entre certa ordem familiar instituída e novas configurações. Nesse sentido, entendo que uma análise sobre parentesco seja relevante não apenas para questionar certo molde familiar como ordem legitimadora, mas também apontar possibilidades de reapropriação dessa ordem pelos sujeitos. Desse modo, e considerando a contribuição central da Antropologia no campo de estudos sobre parentesco, a presente proposta vai além de uma discussão sobre família. Em outros termos, pretendo falar sobre a importância das relações de parentesco e seus enquadramentos nas formações familiares homossexuais, especificamente lésbicas.
»Para atender a esta proposta, realizo em primeiro lugar uma breve exposição de alguns referenciais queer utilizados na pesquisa; em segundo, proponho um diálogo entre as considerações da pesquisa e as discussões sobre parentalidade e parentesco a partir da seleção de uma das entrevistas realizadas.
»Os casais de homens não foram incluídos porque, embora alguns de seus integrantes já sejam pais, as inquietações em torno da parentalidade não ficaram evidentes como nos casais de mulheres. Este fato – maior destaque da parentalidade no discurso dos casais de mulheres – justifica e inicia nossa análise sobre gênero e parentesco, ou sobre como estas mulheres, pelo menos no tocante à constituição de família, deparam-se com maiores indagações e impasses em seu entorno.
»Por fim, o enfoque em um único caso justifica-se a partir da crítica desenvolvida por Fonseca (1999) aos usos da entrevista em pesquisa, ressaltando que minha análise se detém nas micropolíticas homoconjugais para, a partir delas, propor um esboço de uma análise macropolítica.
»CONSIDERAÇÕES FINAIS
»Pelo exposto, é possível concordar com Strathern (2005/2015, p. 48) quando ela afirma que “uma complexa gama de possibilidades é fornecida não só pelo direito, portanto, mas também pela biotecnologia”. Não obstante, a imagem-limite da família nuclear permanece como eixo ordenador. Na história do casal Fernanda e Bruna, estão claros os dilemas a respeito da geração de uma criança não pelas técnicas proporcionadas pela biotecnologia, mas pelos métodos naturais, que nem por isso indagam menos.
»Os questionamentos que elas antecipam – e que, portanto, são delas próprias – remetem ao controle de sua corporalidade, sexualidade e reprodução, assim como a possíveis tentativas da família extensa de identificação e inclusão do genitor na rede familiar. Ademais, a discussão de Fernanda e Bruna sobre a geração de filhos, assim como todo o discurso apresentado ao longo da entrevista, reitera o papel da família de origem, especialmente a de Fernanda, como referência fundadora da família seguinte.
»Estas observações podem a princípio confirmar a visão de autoras como Ramírez-Gálvez (2011, 2009) e Corrêa (1997). Não obstante, na história conjugal apresentada, percebe-se um movimento de ir e vir, um (des)encontro de diferentes discursos que ora ‘autorizam’ o status de casada e a condição de família, ora ‘desautorizam’. Vemos a apropriação de determinadas referências conjugais e familiares porque estas dizem respeito às histórias de Fernanda e Bruna.
»Concomitantemente, vemos tentativas de negociação, de reformulação. Através da conjugalidade, são discutidas possibilidades não apenas familiares, mas também de relações de parentesco.
»Por fim, cabe destacar que esta discussão se aproxima das proposições de Foucault (1984/2004) a respeito da ética do cuidado de si. Segundo o pensador francês, uma ética do cuidado de si envolve práticas de liberdade, que são diferentes de práticas de liberação. Em relação à sexualidade, as práticas de liberação – sendo um exemplo o reconhecimento do casamento homossexual – geram novas relações de poder, que precisam ser controladas por práticas de liberdade. Em outras palavras, práticas de liberdade remetem a uma possibilidade de vida que desestabilize normas e reconfigure relações de poder.
»Todavia, Foucault (1984/2004) deixa claro que, em determinadas situações, processos de liberação podem ser necessários para que aconteçam novas práticas de liberdade. Ademais, o autor acrescenta, “essas práticas [de si] não são, entretanto, alguma coisa que o próprio indivíduo invente. São esquemas que ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu grupo social” (Ibid., p. 276).
»Nesse sentido, o reconhecimento jurídico, social e cultural da conjugalidade e parentalidade homossexual, ainda que nos moldes historicamente reservados às relações heterossexuais, não necessariamente representaria um retrocesso nas transformações da ordem do parentesco, mas sim outro caminho – sem dúvida, mais complexo e permeado de paradoxos – na direção de tais transformações.»
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